03/07/2023 às 10h00min - Atualizada em 03/07/2023 às 10h05min

O julgamento do piso salarial nacional da enfermagem pelo STF - ADI 7.222-DF

Uma análise do voto conjunto dos ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso

Cláudio Moraes

Cláudio Moraes

Advogado especialista em Direito Administrativo e Direito Eleitoral, sócio-fundador do escritório Cláudio Moraes Advogados: www.claudiomoraes.adv.br

A Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 7.222-DF, protocolada pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços - CNSAÚDE, visa a declaração de inconstitucionalidade de alguns dispositos da Lei 14.434, de 04/08/2022, que instituiu o piso salarial nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira, lei esta que ficou popularmente conhecida como piso salarial da enfermagem.

Ao analisar os votos já apresentados na tramitação do julgamento, alguns pontos chamaram atenção deste colunista e entendi por bem expô-los aqui na Cidades e Negócios, sua Revista de Direito Público.

Esta coluna analisará especificamente o voto conjunto apresentado pelos ministros Roberto Barroso e Gilmar Mendes. Vamos lá?

A ação protocolada pela CNSAÚDE requereu medida cautelar nos seguintes termos:
 
Ante todo o exposto, a CNSaúde requer – muito respeitosamente: 
(a) a concessão monocrática – ad referendum ao Plenário e nos termos do art. 102, I, “p”, da CF (combinado com as regras insculpidas entre os arts. 10 e 12 da Lei 9.868/1999) – de medida acautelatória, inaudita altera pars, para suspender os arts. 15-A, 15-B e 15-C da Lei 7.498/1986 até o julgamento de mérito da demanda pelo Plenário da Suprema Corte;

(a.1) alternativamente, a requerente postula a suspensão liminar da lei impugnada até que as autoridades responsáveis pela edição do ato impugnado atendam ao dever de justificação inerente ao devido processo legal e respondam – negativamente e de maneira empírica/metodologicamente hábil – a quesitos similares aos seguintes: 

I. há risco de queda de empregabilidade das categorias abrangidas pela Lei 14.434/2022? 

II. há risco de que usuários dos serviços de saúde, sobretudo nas localidades mais pobres do país, sejam alijados da rede de saúde suplementar em razão do inevitável aumento exacerbado dos custos? 

III. há risco de que o sistema de assistência universal de saúde seja ainda mais sobrecarregado – sobretudo diante da diminuição da rede de centros de saúde conveniados ao SUS (sem fins lucrativos, em especial) pela inviabilidade de manutenção dos serviços com a defasada taxa de custeio?  

IV. há, diante da consequência mencionada, risco de que grande parcela da população perceba grave redução no espectro dos tratamentos essenciais que estão à sua disposição através do SUS (como no citado exemplo das diálises – que podem ser inviabilizadas e cujo fornecimento é quase integralmente feito por unidades privadas conveniadas ao sistema único)?
 
Inicialmente, atendendo ao pedido da autora, o ministro Roberto Barroso havia concedido medida cautelar querida na ação, suspendendo os efeitos da Lei 14.434/2022, e determinou a apresentação de algumas informações técnicas que deveriam ser apresentadas pelo Ministério da Economia, pelos estados-membros da federação bem como pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), para identificar quais os impactos das regras estabelecidas pela nova lei para os entes subnacionais, para a iniciativa privada, bem como sobre a empregabilidade dos profissionais da área. Essa decisão foi referendada posteriormente pelo plenário do STF.

Em seguida, após algumas mudanças legislativas, o advento da Emenda Constitucional 127, de 22/12/2022, bem como da Lei 14.581, de 11/05/2023, que regulamentou a EC n. 127/2022, o relator da ADI 7.222 proferiu uma nova decisão cautelar, o que foi seguido do pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, suspendendo a tramitação do feito.

Contudo, ao devolver o voto-vista, tivemos a apresentação do inusitado voto conjunto de ratificação, explicitação e complementação ao voto do relator subscrito pelos ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso.

Em relação ao voto conjunto, destaco abaixo partes específicas da ementa para posterior análise:

 
4. Consolidação da nova decisão cautelar. Revogação parcial da cautelar anteriormente ratificada pelo Plenário. Prolação de nova decisão, a fim de que sejam restabelecidos os efeitos da Lei nº 14.434/2022, à exceção da expressão “acordos, contratos e convenções coletivas” (art. 2º, § 2º), com a implementação do piso salarial nacional por ela instituído, nos seguintes termos:
 
(i) em relação aos servidores públicos civis da União, autarquias e fundações públicas federais (art. 15-B da Lei nº 7.498/1986), a implementação do piso salarial nacional deve ocorrer na forma prevista na Lei nº 14.434/2022;
 
(ii) em relação aos servidores públicos dos Estados, Distrito Federal, Municípios e de suas autarquias e fundações (art. 15-C da Lei nº 7.498/1986), bem como aos profissionais contratados por entidades privadas que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS (art. 15-A da Lei nº 7.498/1986):
 
a) a implementação da diferença remuneratória resultante do piso salarial nacional deve ocorrer na extensão do quanto disponibilizado, a título de “assistência financeira complementar”, pelo orçamento da União (art. 198, §§ 14 e 15, da CF, com redação dada pela EC nº 127/2022);
 
b) eventual insuficiência da “assistência financeira complementar” mencionada no item anterior instaura o dever da União de providenciar crédito suplementar , cuja fonte de abertura serão recursos provenientes do cancelamento, total ou parcial, de dotações tais como aquelas destinadas ao pagamento de emendas parlamentares individuais ao projeto de lei orçamentária destinadas a ações e serviços públicos de saúde (art. 166, § 9º, da CF) ou direcionadas às demais emendas parlamentares (inclusive de Relator-Geral do Orçamento). Não sendo tomada tal providência, não será exigível o pagamento por parte dos entes referidos no item (ii);
 
c) uma vez disponibilizados os recursos financeiros suficientes, o pagamento do piso salarial deve ser proporcional nos casos de carga horária inferior a 8 (oito) horas por dia ou 44 (quarenta e quatro) horas semanais, por ser esta a interpretação constitucionalmente adequada da cláusula final do art. 2º, § 1º, da Lei nº 14.434/2022.
 
(iii) em relação aos profissionais celetistas em geral (art. 15-A da Lei nº 7.498/1986), a implementação do piso salarial nacional deverá ser precedida de negociação coletiva entre as partes, como exigência procedimental imprescindível, levando em conta a preocupação com demissões em massa ou prejuízos para os serviços de saúde. Não havendo acordo, incidirá a Lei nº 14.434/2022, desde que decorrido o prazo de 60 (sessenta) dias, contados da data de publicação da ata deste julgamento desta decisão.
 
5. Quanto aos efeitos da presente decisão, em relação aos profissionais referidos nos itens (i) e (ii), eles se produzem na forma da Portaria GM/MS nº 597, de 12 de maio de 2023.
 
6. Inconstitucionalização progressiva. Em casos precedentes de fixação de pisos salariais nacionais, o Tribunal atuou de maneira deferente ao poder reformador do Congresso Nacional e sua liberdade de conformação legislativa. No entanto, a generalização de pisos salariais nacionais coloca em risco grave o princípio federativo (CF, arts. 1º, caput, 18, 25, 30 e 60 § 4º) e a livre-iniciativa (CF, arts. 1º, IV e 170, caput), de modo que se consolida a percepção no sentido da inconstitucionalização progressiva dessa medida. Por essa razão, outras iniciativas nessa direção passarão a ser vistas como potencialmente incompatíveis com a Constituição.
 
7. Decisão referendada, nos termos acima expostos.  
 
Pois bem. Segundo o voto conjunto, em relação aos servidores da União, autarquias e fundações públicas federais não há grandes questionamentos, devendo a implementação do piso salarial ocorrer conforme previsto na Lei 14.434/2022.

Mas a coisa começa a mudar de complexidade quando se trata dos entes subnacionais e da iniciativa privada. Resumidamente, os estados-membros, Distrito Federal e municípios só estarão obrigados a cumprir o piso salarial nacional na exata extensão daquilo que for repassado pela União dentro daquilo que se denominou de “assistência financeira complementar”.

Havendo insuficiência dessa “assistência financeira complementar”, instaura-se o dever da União em providenciar tais créditos, e os ministros, no voto conjunto, sugeriram que as fontes desses créditos podem ser aquelas provenientes do cancelamento de dotações destinadas ao pagamento de emendas parlamentares individuais ao projeto de lei orçamentária destinadas a ações e serviços públicos de saúde ou direcionadas às demais emendas parlamentares.
 
Na opinião do colunista, essa sugestão dos ministros de indicar como ponto de partida para a identificação da fonte da assistência financeira complementar as emendas parlamentes individuais é bastante coerente para equacionar uma aparente quebra do pacto federativo relacionado à autonomia dos entes subnacionais pelos Congressistas. Explica-se.
 
O Congresso Nacional que aprovou a Lei 14.434/2022 foi o mesmo Congresso que presenciou a chegada da pandemia do novo Coronavírus no Brasil, no início de 2020, quando os congressistas estavam completando o primeiro ano daquela legislatura. Logo, era esperado que eles estivessem propensos a atuar para reconhecer a importância desses profissionais e, ao mesmo tempo, promover uma valorização financeira dessas atividades.
 
Entretanto, a busca pela valorização deve se dar de forma planejada e observando os limites de competência dos entes federativos, pois, caso contrário, o que os congressistas estariam fazendo era criar problemas sérios para os entes subnacionais (estados, Distrito Federal e municípios) onde eles, deputados federais e senadores, ganhavam as glórias da promulgação da lei, mas deixavam as paralizações, manifestações de sindicatos e dos profissionais e as ações judiciais no colo dos agentes públicos dos demais entes federados, caso estes não conseguissem pagar o piso.
 
Aliás, o voto conjunto dos ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso deixa muito bem registrado que o que se está discutindo na ADI é a inconstitucionalidade ou não da lei que estabeleceu o piso da enfermagem, e não o merecimento desses profissionais, conforme se extrai do voto:
 
7. É importante deixar claro que os profissionais de enfermagem devem ter remuneração proporcional à nobreza com exercem o seu ofício e à admiração que merecem, desse Tribunal e de toda a sociedade. Cabe relembrar e exaltar sua atuação heroica no curso da pandemia da Covid-19 e a resiliência demonstrada ao enfrentar condições frequentemente precárias de trabalho. Aqui se discute, portanto, limites e possibilidades da Administração Pública e das entidades privadas, e não o merecimento profissional de todos os interessados.
 
Feita a devida observação, o voto conjunto defende que, caso a União não tome as providências para se obter a assistência financeira complementar, não será exigido dos municípios, estados e o Distrito Federal o pagamento do piso estabelecido na Lei 14.434/2022.
 
Caso a União repasse o valor relativo à assistência financeira complementar, o pagamento do piso salarias deve se dar de modo proporcional nos casos de carga horário inferior a 8 horas por dia ou 44 horas semanais.
 
Essa proporcionalidade se dá pelo fato de a carga horária variar em alguns estados, DF, e municípios, cuja carga horária é menor que 8 horas diárias. Em outras palavras, se a carga horária for menor que 8 horas diárias e 44 horas semanais o recebimento do piso salarial será reduzido de forma proporcional a esta carga efetiva de trabalho, seja ela de 7, 6 ou 5 horas de trabalho diário, por exemplo.
 
Em relação aos trabalhadores da iniciativa privada, que atuam sob a égide da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o voto conjunto defende a prioridade do negociado sobre o legislado, ou seja, a implementação do piso salarial nacional deve ser precedido de negociação coletiva entre patrões e empregados, motivo pelo qual os ministros estabelecem um prazo de 60 dias, após a publicação da decisão da ADI 7222, para que a Lei 14.434/2022 possa surtir seus efeitos sobre esses profissionais.
 
Embora os ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso entendam que a tentativa de negociação seja uma exigência procedimental imprescindível, fica registrado também que, caso não ocorra a negociação, incidirá a Lei 14.434/2022, e todas as consequências que isso pode causar, como, por exemplo, demissões em massa e possíveis prejuízos aos serviços de saúde pública.
 
Aliás, quando o ministro Roberto Barroso proferiu a primeira cautelar ele já havia registrado a preocupação das consequências negativas que o projeto de lei oriundo do Congresso Nacional que resultou na Lei 14.434/2022 poderia trazer de resultados negativos não apenas para o poder públicos, mas também à própria iniciativa privada e, com destaque especial, para os próprios profissionais, visto que na instituição do piso salarial nacional da enfermagem o Congresso Nacional avançou e não apenas instituiu sua obrigatoriedade para todos os entes (públicos) federados, mas também às empresas privadas.
 
Não foi sem razão que o voto conjunto ainda apresentou o tópico da inconstitucionalização progressiva, no qual ficou registrado que o STF, até o momento, aceitou passivamente a instituição de pisos salariais pelo Congresso Nacional, mas a generalização desses pisos coloca em grave risco alguns preceitos constitucionais caros, como o princípio federativo (arts. 1º, 18, 25, 30 e 60, § 4º, da CF) e a livre iniciativa (arts. 1º, IV, e 179 da CF).
 
Com essa mensagem direta ao parlamento, o voto também deixou registrado que esse movimento do Congresso Nacional faz transparecer uma percepção no sentido da inconstitucionalidade progressiva dessas medidas, de modo que outras iniciativas nessa direção passarão a ser vistas como potencialmente incompatíveis com a Constituição Federal, ou seja, haverá uma predisposição para se declarar a inconstitucionalidade da lei.
 
Para concluir, é importante destacar que essa decisão do STF ainda é referente à medida cautelar. E, embora não haja prazo definido para se julgar o mérito, o colunista acredita que o relator acompanhará de perto as consequências dos efeitos da Lei 14.434/2022, tanto perante o poder público quanto na iniciativa privada, e essa análise deve influenciar substancialmente o julgamento do mérito, tendo em vista que a empregabilidade desses profissionais também deve estar na lista de prioridades dos ministros.
 
Para ter acesso ao voto conjunto dos ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso basta clicar aqui.
 


*Cláudio Moraes é advogado, especialista em Direito Administrativo e Direito Eleitoral, já atuou como Procurador-Geral de Município, e é sócio-fundador do escritório Cláudio Moraes Advogados: www.claudiomoraes.adv.br  
 
(Instagram:
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