Por serem empresas altamente rentáveis, cujos lucros de algumas ultrapassam o produto interno bruto de muitos países, é natural que essas plataformas digitais busquem cada vez mais aumentar seu faturamento, como qualquer outra empresa privada no mundo, mas é justamente o que essas empresas estão dispostas a fazer, ou não fazer, para alcançar seus lucros sem precedentes na história um dos principais fatores que atualmente chama atenção dos governos pelo mundo.
Dito de outra forma, seria possível as próprias empresas promoverem sua autocontenção ao mesmo tempo que buscam bater mais e mais recordes de arrecadação? Detalhe importante: o colunista não tem absolutamente nenhuma objeção na atuação das empresas quanto aos seus objetivos de alavancar seus lucros, jamais.
A questão que se coloca é como os milhões de usuários brasileiros, que também são consumidores, serão atingidos com as estratégias criadas para se aumentar a margem de lucro?
Cathy O’Neil (2020), em seu livro Algoritmos de Destruição em Massa: como o Big Data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia, de forma brilhante alerta que:
“O Facebook é mais como o Mágico de Oz: não vemos os seres humanos envolvidos. Quando visitamos o site, passamos por postagens de nossos amigos. A máquina parece ser apenas um intermediário neutro. Muitas pessoas ainda acreditam que é. Em 2013, quando uma pesquisadora da Universidade de Illinois chamada Karrie Karahalios conduziu uma pesquisa sobre o algoritmo do Facebook, ela descobriu que 62% das pessoas não sabiam que a empresa mexia no feed de notícias. Elas acreditavam que o sistema instantaneamente compartilhava tudo o que postavam com todos os seus amigos.
O potencial do Facebook de influenciar a política vai além do posicionamento de posts e campanhas como a Get Out the Vote. Em 2012, pesquisadores fizeram experimentos com 680 mil usuários da rede social para ver se os posts que viam poderiam afetar seu humor. Já era claro a partir dos experimentos de laboratórios que humores são contagiosos. Estar perto de um rabugento provavelmente vai te transformar em outro, mesmo que brevemente. Mas tal contágio se espalharia online?
Usando software linguístico, o Facebook separou posts positivos (animado!) e negativos (chateado!). Eles então reduziram o volume de posts pessimistas em metade dos feeds, e de otimistas nos demais. Quando estudaram o comportamento subsequente de postagem dos usuários, encontraram evidências de eu o feed manipulado de fato havia alterado seus humores. Aqueles que viram menos postagens alegres haviam produzido mais posts negativos. Um padrão similar emergiu do lado positivo.
A conclusão deles: “Estados emocionais podem ser transferidos a outras (...), levando pessoas a sentir as mesmas emoções sem que tenham consciência disso”. Em outras palavras, os algoritmos do Facebook podem afetar como milhões de pessoas se sentem, e essas pessoas não saberão que isso está acontecendo. O que ocorreria se jogassem com as emoções das pessoas no dia das eleições?” (O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: com o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia; tradução Rafael Abraham. 1. ed. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão, 2020, págs. 284 e 285)."
Algumas das principais empresas de tecnologia do mundo, que se enquadram no conceito de big techs, e que estão em atuação no Brasil - como, por exemplo, a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), Google (que inclui serviços como o Youtube, Gmail, Google Meet etc.), Twiter, Amazon, TikTok, Telegram e Twitter - possuem em mãos um poder imenso de pautar ou permitir pautar assuntos altamente sensíveis de interesse de uma nação, envolvendo absolutamente qualquer tido de assunto, inclusive aqueles que possam ensejar estados mentais coletivos perturbadores.
Reitera-se: o poder destrutivo de uma desinformação ou uma mentira aparentemente banal contada entre dois amigos numa mesa de bar jamais pode se comparar a uma desinformação/mentira contada numa rede social, pois esta tem o potencial de atingir dezenas, centenas, milhares ou milhões de pessoas, numa única e simples postagem.
Disseminação de conteúdos de grupos nazifascistas
A título de exemplo, nos últimos tempos, no Brasil e no mundo, foi identificada uma onda crescente de grupos nazifascistas que se utilizam das redes sociais, à luz do dia, para proliferar suas ideias criminosas e estimular a entrada de novos membros, o que outrora era localizado apenas na dark web.
Noutras palavras, paulatinamente, esses agentes criminosos foram emergindo das profundezas da internet para a superfície das redes sociais e perceberam que os algoritmos das plataformas digitais (estas mesmas que precisam ser reguladas) passaram a disseminar com muito mais rapidez e volume seus conteúdos, o que ajuda exponencialmente no aumento de adeptos desses grupos extremistas.
O poder de manipular processos eleitorais
Em relação aos assuntos político-eleitorais, como visto no texto da Cathy O’Neil, essas plataformas digitais possuem o poder de manipular a opinião pública de modo a desequilibrar uma disputa eleitoral e alterar os rumos de uma nação.
Todavia, empresas privadas jamais podem ter em mãos um poder capaz de conduzir os rumos políticos de uma democracia, na qual o detentor do poder é o povo, que deve ser municiado de informações verdadeiras e transparentes para decidir suas escolhas políticas.
Ainda que as plataformas digitais aleguem que não são veículos de comunicação, é certo que a suposta ausência desse conceito não lhes retira o imenso poder que possuem de escolher os conteúdos que aparecerão como prioridade nas telas dos aparelhos eletrônicos dos usuários. Soma-se a esse poder de escolha o poder de imprimir intensidade e capilaridade a esses conteúdos, fazendo-os chegar a uma parcela significativa dos seus milhões de usuários ou, quiçá, a todos.
Agora imagine se as pessoas por trás das plataformas digitais passem a utilizá-las para potencializar os conteúdos dos candidatos a cargo eletivo de sua preferência, e inibindo a distribuição dos conteúdos publicados pelos candidatos que não possuem simpatia. Em ocorrendo tal situação, a paridade de armas entre os candidatos estará completamente comprometida e o processo eleitoral terá sido corrompido, fraudado, manipulado por uma empresa privada (muitas vezes internacional) que decidiu fazer do eleitor seu boneco de ventríloquo.
Regulação para proteger os usuários
Para que os usuários possam usar as plataformas digitais, estas empresas apresentam-lhes seus termos de uso, os quais devem ser aceitos por adesão, ou seja, sem qualquer possibilidade de os usuários sugerirem alterações nos termos do contrato.
As regras desse contrato assinado entre as plataformas e os usuários são frequentemente alteradas pelas empresas, mas essas regras não são claras e várias pessoas são prejudicadas tendo seus conteúdos restringidos ou retirados, além da suspensão ou exclusão do usuário, sem que estes tenham uma resposta transparente das plataformas indicando o motivo da punição.
O PL 2630/2020 também abordará essa relação entre as plataformas e os usuários, de modo a proteger as pessoas de arbitrariedades das empresas. Pessoas que utilizam as redes sociais para divulgar seus negócios (muitas vezes de pequeno porte) e garantir o sustento da família são punidas pelas plataformas sem qualquer motivo aparente; entretanto, em sua defesa, as empresas alegam que alguma de suas normas internas foi descumprida e por serem empresas privadas os usuários ficam com sérias restrições em sua defesa, quase sempre tendo de aceitar a decisão das plataformas.
OS CUIDADOS NA REGULAÇÃO
O colunista é a favor da regulação de alguns serviços das plataformas digitais, mas sem abrir mão de alguns cuidados fundamentais, com destaque para os listados abaixo.
Liberdade de expressão
A liberdade de expressão, sem dúvida, é uma das pautas mais destacadas quando tenta se defender a obstrução do PL 2630/2020. Obviamente, a liberdade de expressão responsável jamais poderá ser tolhida, pois é um direito garantido na Constituição Federal, e uma lei ordinária não poderá retirar esse direito das pessoas.
De toda forma, atenção especial deve ser dada a essa temática, pois as plataformas digitais são instrumentos importantes para garantir a participação social nas tomadas de decisões governamentais e nos diversos debates de interesse da coletividade.
Relação entre as plataformas e os veículos jornalísticos
Outro ponto extremamente importante que se deve ter cuidado é com a possibilidade das plataformas de buscas, por exemplo, deixar de indexar conteúdos jornalísticos caso não cheguem a um acordo com os veículos de imprensa. Essa pauta, aliás, está em destaque em vários países pelo mundo.
A questão aqui é a seguinte: as plataformas informam que 2 bilhões de cliques são gerados todo mês pelo Google para sites jornalísticas do Brasil, potencializando a visitação destes sites. Por outro lado, as empresas de jornalismo informam que as plataformas de buscas se apropriam dos seus conteúdos quando apresentam a manchete, o lead e a imagem de uma matéria na primeira página, fazendo com que as pessoas não acessem os sites originários da notícia e diminuindo a quantidade de visitação e prejudicando na métrica de audiência para venda de anúncios[1].
Das condições tecnológicas das plataformas
Para que as empresas possam cumprir as regras da regulação sem inviabilizar seus serviços é preciso que tenham condições tecnológicas para promover a readequação das suas plataformas. Melhor seria se as empresas pudessem participar ativamente dos debates, o que está sendo buscado pelo parlamento, ressalta-se.
A título de exemplo, cita-se a situação na qual, de forma coordenada, as plataformas são inundadas por milhares, quiçá milhões de notificações denunciando supostos conteúdos fraudulentos/ilegais, mas, na verdade, representam estratégias de ataques contra opositores políticos, desafetos pessoais, concorrentes comerciais ou mesmo um ataque às próprias plataformas para que estas não consigam cumprir no prazo legal as respostas que devem prestar às autoridades ou aos usuários, por exemplo. Lembrando que as redes sociais possuem mais de 5 bilhões de usuários no mundo.
Conclusão
O PL 2630/2020 não representa nenhum menu de inovação legislativa mirabolante, ao contrário, tenta reunir num único diploma legal, destinado às plataformas, temas muitas vezes já disciplinados em outros diplomas legais e altamente sensíveis a sociedade, mas que merecem atenção especial dessas empresas por conta dos elevados riscos coletivos que a disseminação de certos conteúdos podem gerar, como se deu recentemente no caso do ataque a creche em Blumenau-SC, ou mesmo no caso do atentado do dia 8 de janeiro de 2023, que resultou na invasão da sede dos três poderes numa tentativa fracassa de golpe de estado.
A União Europeia, Estados Unidos e muitos outros países democráticos estão, atualmente, enfrentando esse debate superimportante e inadiável, e o Brasil não pode perder a oportunidade de também definir sua própria regulação, sem inviabilizar os serviços das plataformas digitais e a liberdade de expressão responsável.
*Cláudio Moraes é advogado, especialista em Direito Eleitoral e Direito Administrativo, já atuou como Procurador-Geral de Município, e é sócio-fundador do escritório Cláudio Moraes Advogados: www.claudiomoraes.adv.br
(Instagram: @claudiomoraes.7)