Advogado especialista em Direito Administrativo e Direito Eleitoral, sócio-fundador do escritório Cláudio Moraes Advogados: www.claudiomoraes.adv.br
A presente coluna surgiu de duas situações distintas, mas, coincidentemente, envolvem dois grandes servidores públicos: Andrea Ache e Renato Felini. Ela, servidora pública federal, advogada, especialista em Direito do Estado e Coordenadora de Normas do Ministério da Economia. Ele, Doutor em Administração e Secretário de Gestão do Ministério da Economia.
O primeiro fato se deu quando o colunista iniciou a leitura do livro “A Lei de Licitações e Contratos: visão sistêmica” - de autoria de Andrea Ache e Renato Fenili¹ - e se deparou com a seguinte passagem:
“a realidade heterogênea do Brasil, em sede de licitações e contratos Administrativos, é pulsante {...} a exigência de servidores efetivos como agentes de contratação tensiona o paradigma vigente de agentes comissionados e terceirizados em múltiplas unidades de compras pelo País {...} a ‘realidade federal’ é tida como provida de recursos, de expertise, de um tecnicismo que é vencedor, em qualquer cenário {...} no extremo outro do continuum, rascunha-se uma ‘realidade’ municipal, retratada como eivada de carência de competências {...} há, de fato, realidades – no plural – municipais, que destoam entre si. Da mesma sorte, por exemplo, a Administração Pública federal foi recentemente avaliada pelo Tribunal de Contas da União como desprovida de maturidade para gestão do plano de contratação anual.” (Destacou-se).
Já o segundo fato se deu poucos dias depois, em 23/12/2022, quando os dois servidores participaram de webinar no Canal do YouTube do Ministério da Economia, juntamente com outros brilhantes profissionais do Governo Federal, no qual divulgaram o resultado do trabalho realizado entre a Advocacia Geral da União e o Ministério da Economia relativo à publicação dos modelos padronizados de licitações e contratos administrativos que servirão de guia condutor não apenas para o Governo Federal, mas também auxiliará significativamente os trabalhos técnicos dos Estados, Distrito Federal e Municípios quando da aplicação da nova Lei de Licitações, Lei 14.133/2021.
No webinar, os servidores envolvidos com o trabalho que estava sendo apresentado ao público festejavam vários desafios superados. E o entusiasmo não era à toa, pois a Lei 14.133/2021, a partir de 1º de abril de 2023, reinará como o principal diploma legal a disciplinar os processos licitatórios no Brasil. E os modelos apresentados pelas equipes farão grande diferença.
De todo modo, além de compartilhar da alegria dos aguerridos servidores em conseguir finalizar os modelos antes do Natal, algo chamou atenção do colunista: o festejo das equipes da AGU e do Ministério da Economia em ter conseguido atuar de forma conjunta, participativa, colaborativa, em cooperação para que aqueles modelos pudessem ser entregues da forma mais completa possível a todos os envolvidos com licitação pública no Brasil, a nível Federal, Estadual, Distrital e Municipal.
E por que esse fato (de ter conseguido atuar de forma conjunta) chamou atenção do colunista?
A resposta é a seguinte: quem tem a oportunidade de conhecer e analisar a realidade administrativa de alguns municípios pelo Brasil - e pode ser exemplos espalhados em diferentes Estados - possivelmente vai se deparar com a falta de comunicação entre os órgãos públicos existentes dentro daquela específica máquina administrativa.
Equipes de servidores da secretaria de saúde que não se conectam com servidores da secretaria de administração, que por sua vez não se conectam com a equipe da secretaria de planejamento, que também não sabem por onde passa o planejamento da secretaria de obras e assim por diante.
E essa desconexão tem um alto custo para a administração pública como um todo, custo em termos de economia de tempo, de verba pública, na eficiência e na qualidade das obras e serviços públicos prestados. E quem sofre com essa falta de comunicação entre os atores públicos é sempre o cliente principal: a sociedade.
E ver, em 2022, servidores do mais alto escalão, da elite do funcionalismo público federal, respeitados em suas áreas de atuação, inclusive na área acadêmica, entusiasmados em ter conseguido atuar de forma sincronizada com outro órgão federal surpreende o colunista por não imaginar que essa realidade estava enraizada nas três esferas de governo.
A Constituição Federal de 1988 elevou o protagonismo dos municípios e lhe conferiu grandes responsabilidades em áreas distintas - isolada ou conjuntamente com seu respectivo Estados e a União - como saúde, educação, meio ambiente, assistência social, cultura etc.
E para que os objetivos sejam alcançados, tais políticas públicas precisam ser implementadas de forma coordenada por todos os envolvidos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), quando envolver mais de um ente federativo; ou entre os órgãos, quando se tratar de política local.
Exemplificando a análise desta coluna nas compras públicas, a nova Lei de Licitações, Lei 14.133/2021, inegavelmente, foi talhada pensando na estrutura administrativa do Governo Federal, que possui expertise e organização incomparavelmente superiores àquelas dos Estados, Distrito Federal e, especialmente, dos Municípios.
É notório que além de incorporar entendimentos jurisprudenciais consolidados do Tribunal de Contas da União, a Lei 14.133/2021 incorporou também diversas regras criadas e praticadas pelo Governo Federal, e que serviam de base para os demais entes da federação. A influência do Governo Federal sobre Estados, Distrito Federal e Municípios, quando o assunto é licitação pública, é inegável.
O Brasil possui 5.570 municípios e, segundo dados apresentados pelo IBGE² em 2021, 67,7% (3.770 municípios) possuem menos de 20 mil habitantes e concentram 14,8% da população, com 31,6 milhões de habitantes.
Mais da metade da população brasileira (57,7%), ou 123 milhões de habitantes, se concentra em apenas 326 municípios, o que corresponde a 5,8% dos municípios brasileiros, os quais possuem mais de 100 mil habitantes. Ainda segundo o IBGE, em 2021, o número de cidades com mais de 500 mil habitantes subiu para 49.
Não há como negar a diferença de estrutura organizacional entre o Governo Federal e esses mais de 67% dos municípios brasileiros, que possuem menos de 20 mil habitantes. De toda forma, a nova Lei de Licitações - assim como todas as demais normas que regrem a administração pública – é de aplicação obrigatória por todos os entes federativos.
É verdade que há argumentos, tentadores inclusive, para tentar defender, a nível municipal, que o Brasil possui vários Brasis – ou seja, com realidades sociais, econômicas e culturais distintas - e que, por isso, é necessário contemporizar algumas atuações (ou omissões) a nível de organização administrativa.
Em que pese realmente existir vários Brasis, também existe uma outra realidade que jamais pode ser esquecida, que é justamente a eterna espera da sociedade por uma administração pública mais eficiente, mais célere, mais moderna, mais racional e menos custosa.
No tocante às administrações públicas municipais, os agentes públicos devem agir de forma proativa para dar fiel cumprimento aos ditames legais e devem buscar o aperfeiçoamento permanente da máquina pública, e isso passa, obrigatoriamente, pela montagem de equipe vocacionada ao serviço público, independentemente das particularidades locais que possam existir (culturais, sociais, econômicas, políticas etc.).
Paralelamente a essa montagem da equipe vocacionada é preciso que se tenha clareza que deve existir a cultura do aperfeiçoamento permanente desse grupo, tanto de forma individual como de forma coletiva, e isso ajudará na construção da internalização da necessidade de comunicação entre todos os agentes.
Ao se promover, por meio de capacitação contínua, o nivelamento técnico das equipes responsáveis de cada órgão pela condução das políticas públicas municipais o diálogo entre esses setores se dará de forma muito mais natural, pois haverá conteúdo técnico relevante de ambas as partes para se levar em consideração, diferentemente de quando alguns setores não possuem uma base técnica mínima para sentar-se à mesa de debate.
A falta de comunicação entre os órgãos gera desperdício de tempo e dinheiro público, algo inaceitável atualmente. Produz, ainda, obras e serviços ineficientes que, muitas vezes, exigem o retrabalho e novos gastos em algo que já poderia ter sido executado envolvendo todos os agentes (órgãos) necessários.