24/06/2022 às 15h42min - Atualizada em 24/06/2022 às 15h42min

As reformas tributárias no novo “BIG BANG” constitucional

Carlos Schenato

Carlos Schenato

Mestrando em Direito, Profº. no Curso de Pós em Direito e Processo Tributário no CESUPA. Vice-presidente da Assoc. dos Advogados Tributaristas do Pará

Grande parte dos estudos constitucionais sobre emendamentos constitucionais exploram principalmente os meios informais de emendas, estes que ocorrem quando normas políticas são alteradas ou quando as cortes, geralmente respondendo a movimentações sociais e políticas, interpretam ou constroem a constituição de forma a desenhar as políticas dentro de suas “preferências”. 

Entretanto, para além da própria mudança constitucional formal, as regras para estas alterações, ou seja, como e quando podem ou não ocorrer as emendas formais, são imprescindíveis para a compreensão da opção de desenho constitucional escolhido pelos constituintes em 1988.

O nível de detalhamento das políticas públicas na Constituição Federal de 1988, para além dos papéis a serem desempenhados por cada nível de governo, contribuiu significativamente para o alto índice de emendamento formal da Constituição. 

Este detalhamento resultou em um documento ambicioso e extenso, o que juntamente com a fragmentação e desconfianças político-partidárias, múltiplos grupos de interesses e a participação relevante da sociedade civil, gerou uma Constituição Federal que dispôs dos mais variados interesses até mesmo contrapostos.

Os novos governantes se deparam sempre com a necessidade de emendar a Constituição Federal para promover as suas agendas políticas, especialmente as de políticas públicas, o que influencia ainda mais no alto índice de emendamentos.

A estabilidade, ou até mesmo uma certa “intocabilidade”, características dos “bons textos constitucionais” parecem não ter sido sinônimos da vivência da Constituição Federal de 1988, esta que mesmo em seus primeiros anos de existência foi objeto de inúmeras críticas apontando a ingovernabilidade sob seu manto. Nos primeiros vinte anos de existência, ao menos 62 emendas alteraram o texto constitucional, entre 1992 e 2007, sendo que apenas seis dessas alterações ocorreram dentro da “janela” de Revisão Constitucional de 1993 e 1994. É de se estimar que nesses primeiros vinte anos, as emendas constitucionais representaram um pouco mais que uma “meia constituição”, considerando os dispositivos novos e o texto original em 1988, incluindo o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

É dentro desta perspectiva que alguns autores reconhecem a existência de um “big bang” constitucional, marcado por intensas mudanças constitucionais efetivas, especialmente no biênio de 1995 a 1997, ocorridas no mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e, em outra oportunidade, no quadriênio de 2008 a 2012, com a postura mais ativista do Supremo Tribunal Federal.

Se por um lado, nestas três décadas, houve 122 emendamentos constitucionais, indicando uma instabilidade normativa, deve-se considerar, por outro lado, que a Constituição de 1988, diferentemente das demais, revela grande aptidão para adaptação, sendo que a maior parte dessas alterações constitucionais não afetaram significativamente um “núcleo” constitucional, mantendo-se preservados o sistema político e a carta de direitos, pelo menos até a Emenda Constitucional de nº 95/2017, que limitou os gastos públicos ao estabelecer um teto constitucional, afetando o sistema de repartição e vinculação de receitas que financia grande parte dos direitos sociais como a saúde e a educação.

Esta resiliência constitucional parte de diversos elementos que a compõe, especialmente o detalhamento e a amplitude do texto da Constituição de 1988, bem como a existência de critérios rígidos ou até mesmo “hiper-rígidos” quando da proteção de alguns dispositivos que compõem o cerne constitucional, também denominados de cláusulas pétreas, sobre as quais deve-se evitar o retrocesso (efeito cliquet), consoante o que dispõe o artigo 60, §4º da CF/88.

Até o presente momento no atual governo, vinte e duas emendas constitucionais, entre a de numeração 100 e 122, foram promulgadas pelo Congresso Nacional, sendo que ao menos quinze delas tiveram objetivos fiscais e orçamentários (incluindo eleitorais), e quatro destas expressamente vinculadas à pandemia ocasionada pelo SARS-CoV-2, também denominado de COVID-19.

Entre as bandeiras levantadas pelo Poder Executivo neste mandato, especialmente no comando do “Superministério da Economia”, desponta, entre outras propostas, o “Plano Mais Brasil”, que em conjunto com a intenção de mais privatizações e desinvestimentos por parte do Executivo, já teve seu (parcial) sucesso com a reforma da previdência, aprovada com o texto-base entregue pela Presidência, mas aparentemente esfriou nos últimos dois anos.

Ainda integrante do indigitado plano executivo, a PEC do Pacto Federativo, retratada pelo slogan “Mais Brasil, menos Brasília”, altera significativamente a centralização dos recursos e impõe ainda mais rigor sobre a responsabilidade fiscal dos gestores públicos, constituindo até mesmo um “Conselho Fiscal da República”, composto por representantes das três esferas federativas e presidentes dos três poderes.

No mesmo sentido, as propostas de emendas apelidadas de “PEC Emergencial” e “PEC dos Fundos”, objetivam reduzir os gastos públicos em despesas obrigatórias e extinguir todos os fundos públicos infraconstitucionais que não forem ratificados por meio de lei complementar em até dois anos, liberando destes fundos aproximadamente 200 bilhões de reais à conta única do tesouro nacional, exclusivamente para o pagamento da dívida pública.

Com uma proposta retardatária em relação aos debates sobre reforma tributária no Congresso Nacional, tendo em vista as PEC’s nº 45/2019 e 110/2019, respectivamente pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, o Poder Executivo entregou ao Congresso em julho de 2020 a primeira fase de sua proposta de reforma constitucional, tendo tão apenas em 25 de junho de 2021, apresentado a segunda fase, esta infraconstitucional.

Na atual discussão acerca das reformas tributárias propostas, a perspectiva privada figura como centro de debates, como uma perspectiva de aumento de carga tributária aos contribuintes. Esta perspectiva jamais poderá ser ignorada, pois essencial aos diversos princípios constitucionais encartados nos limites constitucionais ao poder de tributar.

Ocorre que, para além da tributação propriamente dita, as reformas tributárias preveem uma altíssima modificação na competência e autonomia dos entes federados, como no caso da PEC nº 45/2019, em que há vedação expressa à diminuição das alíquotas singulares vinculadas à destinação dos recursos aos outros entes da federação, razão pela qual os Estados e Municípios, embora tenham “autonomia”, terão que obedecer à alíquota de referência calculada pelo Tribunal de Contas da União e aprovada pelo Senado Federal, em uma tentativa de restringir a famosa “caridade com o chapéu alheio”.

A PEC nº 110/2019, em trâmite no Senado Federal, igualmente tem especificidades em relação às transferências, como pode-se extrair da constituição, conforme o futuro art. 159-A da proposta, de fundos para redução da disparidade da receita per capita entre os Estados, com recursos destinados a investimentos em infraestrutura.

Guardando semelhança ao dispositivo da PEC nº 45/2019 que homenageia a quantidade populacional de determinados municípios, a PEC nº 110/19 permite a distribuição de até dez por cento dos recursos do art. 158, parágrafo único, inciso I da Constituição Federal, desde que com base na população do Município.

Ainda, a PEC do Senado Federal prevê que a parcela da arrecadação de impostos transferida pela União aos Estados e Municípios, bem como dos Estados à União e Municípios, não integrarão a “base de cálculo” para determinar a parcela dos valores a serem aplicáveis, pela União, Estados e Municípios, na manutenção e desenvolvimento do ensino, consoante o futuro art. 212, §1º da proposta.

O sistema de transferências intergovernamentais é essencial para a garantia da autonomia financeira dos entes subnacionais que, em muitos casos, é apenas por meio dos repasses financeiros que conseguem concretizar, ainda que não plenamente, os deveres atribuídos pelas competências constitucionais.

Tais avanços são indicativos de que as emendas constitucionais propostas não se subsumem àquelas meramente “programáticas”, mas tal qual no governo FHC, principalmente pautado por um contexto neoliberal, o governo intenta promover alterações fundamentais na organização do Estado.

Os efeitos ainda não são claros.

REFERÊNCIAS:
ALBERT, Richard. The expressive function of constitutional amendment rules. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 2, n. 1, p. 7-64, jan./abr. 2015.
ARANTES, Rogério B. e COUTO, Cláudio G. (2008), “AConstituição Sem Fim”, in S. Praça e S. Diniz (orgs.), Vinte anos de Constituição. São Paulo, Paulus, pp. 31-60. 
GINSBURG, Tom; POSNER, Eric A. Subsconstitutionalism. Stanford Law Review, California, vol. 62, p. 1583-1600, 2010.
MAUÉS, Antônio Moreira. 30 anos de Constituição, 30 anos de reforma constitucional. Revista Direito GV, v. 16, n. 1, 2020.
MELO, Marcus. Mudança constitucional no Brasil, dos debates sobre regras de emendamento na constituinte à "megapolítica". Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 97, p. 187-206, nov. 2013.
SOUZA, Celina. Regras e contexto: as reformas da Constituição de 1988. Dados, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 791-823, 2008.
VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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