A presente nota é um recorte de um capítulo do Livro “Reformas ou Deformas Tributárias e Financeiras – por que, para que, para quem e como?”, organizado pelos professores Fernando Scaff, Misabel Derzi, Onofre Batista Júnior e Heleno Torres, no qual tive a honra de participar.
Sabemos que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, assegura aos cidadãos os direitos individuais basilares que compõem a pavimentação do ordenamento jurídico pátrio. Dessa mesma forma, o artigo 6º, por sua vez garante aos tutelados direitos sociais, coletivos, inerentes à sociedade como um todo.
Em verdade, afirma-se que essas garantias são responsáveis por organizar o Estado Democrático de Direito.
Assim sendo, é notório que os recursos do Estado são limitados e regrados pela Lei Orçamentária Anual cuja função é direcionar os recursos financeiros do país que ficam comprometidos a uma destinação especifica pelo período nela definido.
Por certo, são os tributos, os maiores responsáveis pela arrecadação do Estado, e é por meio desta receita que o Estado deverá garantir os direitos basilares dos cidadãos, contribuintes, contudo há limites para esta arrecadação, a qual não pode ser desenfreada com uma suposta justificativa para “garantir direitos”, nem ser considerada indevida se o Estado deixar de garantir tais direitos.
Nos últimos anos, inúmeros são os estudos que visam demonstrar a ineficiência do instituto da Execução Fiscal no Brasil e, como suposta resposta, várias medidas alternativas foram adotadas pelo Fisco, com a razão última de arrecadar, buscando demonstrar uma maior rigidez aos contribuintes caracterizados como sonegadores ou devedores contumaz.
A pergunta que fica é: E o contribuinte de boa-fé? Aliás, má-fé, dolo, fraude etc., podem ser presumidas a ponto de justificar a mudança de comportamento das autoridades fiscais com o viés de cobrar sem observância dos princípios constitucionais tributários? E o crédito tributário, este pode ser negociado, considerado disponível?
Para que se possa compreender a possibilidade de disponibilidade do crédito tributário, se faz necessário apresentar o atual contexto de cobrança fiscal do crédito tributário e os “modernos meios alternativos” desta cobrança.
Vejamos.
Recentemente, várias questões inerentes aos meios alternativos de cobrança do crédito tributários vieram à tona como: Deve ser aplicado ou não o incidente de desconsideração da personalidade jurídica – IDPJ na esfera tributária? É constitucional a averbação pre-executória introduzida pela Lei 13.606/2018? Qual a duração do Protesto de CDA há limites? Como deve ser aplicado os critérios do Arrolamento de bens previstos na IN 1565/2015? O ICMS declarado e não pago enseja responsabilidade criminal?
Perceba que se busca demonstrar que estes atos exemplificados, dentre outros, poderão causar em tese, no futuro uma constrição ao patrimônio de contribuinte de maneira confiscatória ou trazer consequências que afronte a livre iniciativa prevista no artigo 170 da CF. Logo, não é apenas o ato em si de constrição, mas todas as medidas, se forem irregulares, requeridas pelo Fisco que prepararão para um futuro ato confiscatório que devem ser repudiadas, destacando que qualquer ato alternativo de cobrança que não possua amparo legal ou de legitimidade pode representar uma pena capital para o contribuinte (PF ou PJ) algo veementemente inaceitável pelo nosso ordenamento.
A defesa do primado da vedação ao confisco deve ser ampla, geral e irrestrita, desde que demonstrado que houve uma medida desleal no processo ou procedimento tributário. É isto que a Constituição Federal garante.
É isso que defendemos.
Por meio de uma interpretação sistêmica, integrativa, o magistrado perceberá que os limites constitucionais ao poder de tributar do Estado e, consequentemente, a caracterização de medidas confiscatórias não estão apenas no pagamento principal de tributos, mas nas multas, na atualização do débito, nas medidas preparatórias tributárias, nas obrigações acessórias etc. devendo haver ampla proteção ao princípio da vedação ao confisco; podendo ser alegado em tese ou em medida procedimental/processual por ser uma garantia constitucional.
Quanto aos questionamentos hipotéticos acima, a intenção última é promover uma reflexão do leitor, mas diante de um recorte metodológico, prudente se faz enfrentar, mesmo que de forma superficial, alguns exemplos ali destacados.
Quanto ao redirecionamento por presunção de dissolução irregular, poderá ser caracterizado um confisco, devendo o ordenamento proteger os cidadãos que solidariamente contribuem para a manutenção do sistema tributário.
A Súmula 435 do STJ e a responsabilização da pessoa física do sócio, se deve ter claro os pontos a seguir.
A súmula sedimenta entendimento do tribunal fundado em interpretação do art. 135 do CTN, que trata da responsabilidade pessoal, entre outros, do diretor ou sócio-gerente pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.
A súmula tem o mérito de fazer referência a "sócio-gerente", afastando a responsabilização do sócio que não influenciava no desenvolvimento das atividades da empresa ao tempo da dissolução.
Além disso, é imprescindível que se considere, como o próprio STJ vem fazendo, ser incabível, em nosso ordenamento, a figura da responsabilidade objetiva, isto é, o fato da dissolução irregular acarretar o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente não implica que este necessariamente será condenado ao pagamento.
Não: apenas se, de fato, tiver agido com dolo, culpa, fraude ou excesso de poder na forma do art. 135, III, do CTN é que será condenado. A súmula explicita, todavia, que é ônus dele, sócio-gerente, ilidir a presunção que agora pesa contra si. Deverá ele, portanto, fazer a prova (nesse sentido: AgRg no REsp 1091371/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/10/2010, DJe 5/11/2010). Nesse sentido, é que se entende que a própria súmula pode ser invocada por ofender o princípio da vedação ao confisco, em tese.
Em outras palavras, a presunção de que se está tratando e a do caso em tela, é relativa – comporta prova em sentido contrário, aliás, apenas isto pode garantir a segurança jurídica tão almejada em âmbito tributário.
Por fim, por mais que esteja implícita a ideia, nunca é demais ressaltar: quanto à possibilidade de "redirecionamento' da execução fiscal, significa dizer, por óbvio, que o Fisco deve sempre tentar obter a satisfação de seu crédito, de início, da própria sociedade, que é a devedora-principal.
Já no que se refere ao Arrolamento de bens e responsabilidade tributária, tecemos as seguintes considerações.
O crédito tributário representa juridicamente a expressão nominal do direito de crédito que o Estado dispõe contra o sujeito passivo tributário (contribuinte ou responsável), direito este que revela um interesse público especial na medida em que o tributo constitui o preço que a cidadania paga para que o Estado promova a satisfação das necessidades coletivas.
A obrigação tributária, no bojo da qual nasce o crédito tributário, nada mais é que a estrutura formal desenvolvida no âmbito do Direito Privado, tomada de empréstimo pelo Direito Tributário para instrumentalizar o dever tributário de pagar tributos imposto a todos no Estado Democrático de Direito.
Criados para reforçar o cumprimento do dever tributário pelo sujeito passivo, os privilégios e garantias compõem a essência do regime jurídico do crédito tributário, são-lhe ínsitos e dele não se apartam. O crédito qualifica-se como tributário, entre outras razões, porque é dotado de privilégios e garantias que a ordem jurídica lhe assegura. Assumem a natureza de privilégios e garantias do crédito tributário todas as normas jurídicas que tenham o objetivo precípuo de reforçar a possibilidade de realização do direito de crédito do Estado em matéria tributária. O arrolamento de bens está inserido neste contexto.
O arrolamento consiste em medida acautelatória dos interesses da Fazenda Pública. Trata-se de procedimento administrativo de acompanhamento do patrimônio do sujeito passivo que visa garantir o crédito tributário, mediante a identificação de possíveis situações de dilapidação patrimonial.
A finalidade da aludida medida é realmente de conferir maior garantia aos créditos tributários da Fazenda Pública, de valor significativo, com o objetivo declarado de garantir a futura suficiência de bens e direitos do sujeito passivo para a satisfação do débito fiscal.
Contudo, o arrolamento de bens só pode ser utilizado quando atendidos os requisitos legais atinentes a presunção de risco do crédito – crédito tributário igual ou maior que 30% dos bens declarados do sujeito passivo, nos termos na IN 1565/15.
Uma vez gravados com o arrolamento os bens do sujeito passivo, a substituição fica condicionada a uma análise da RFB e ainda é necessária a feitura de avaliação oficial do valor do imóvel, o que implica em onerosidade totalmente ilegal. É inegável, portanto, a restrição ao direito de propriedade, pois há embaraço e ônus negocial, pecuniário e procedimental, logo uma possível afronta ao não confisco, sem mencionar nas formalidades exigidas pelos cartórios e departamentos de trânsito para o ato de desarrolamento.
O gravame fica registrado na matrícula do imóvel e exposto na atividade comercial que o contribuinte realiza, portanto, há sérios reflexos negativos em seu direito de propriedade somente pelo fato de estar sendo considerado como responsável de crédito tributário ainda em discussão administrativa. Não se pode admitir prejuízo real ao particular em razão de garantia virtual de um crédito tributário potencial que por própria dicção legal não está em risco.
Um dos elementos de definição do crédito tributário é a caracterização daqueles que devem compor o polo passivo da obrigação, ou seja, a sujeição passiva é elemento indissociável da definitividade do crédito como um todo, e, bem assim, de sua exigibilidade.
Por esse motivo, na aplicação do princípio da tipicidade tributária e com vistas à maior proteção de quem deve pagar o tributo, o sujeito passivo deve necessariamente ser definido em lei (CTN, art. 97, III).
O sujeito passivo direto é o contribuinte (CTN, art. 121, § único, I), ou seja, aquele que tem relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato típico prescrito na lei, seja vinculado ou não à atividade estatal.
O sujeito passivo indireto – ou responsável na definição legal (CTN, art. 121, § único, II), é aquele que, embora não seja contribuinte, pois não integra a relação contributiva natural, possui obrigação decorrente de disposição expressa de lei calçada em pressuposto fático específico, tendo como consequência responder pelo pagamento de tributo cujo inadimplemento tenha relação com o descumprimento daquele dever.
Nessas hipóteses, havendo ainda uma discussão assegurada constitucionalmente pelo duplo grau, quaisquer ônus, mesmo considerados meras indisponibilidades, já acarreta um confisco ao contribuinte/responsável não compatível com a livre iniciativa e princípios constitucionais.
Quanto ao IDPJ, apresentamos algumas considerações.
O incidente de desconsideração da pessoa jurídica é fruto da construção histórica da disregard doctrine e da constitucionalização do direito processual civil promovida pelo Código de Processo Civil de 2015.
É de conhecimento amplo que o Fisco, por intermédio das Procuradorias dos Municípios, Estados, Distrito Federal e União, mediante simples petição nos autos das execuções fiscais requer o redirecionamento do feito executivo para a figura dos sócios, muitas das vezes sem qualquer fundamento legal ou jurisprudencial para tanto.
É bem verdade, por outro lado, a premissa de que a defesa do executado, em regra, deve ser exercida por meio de embargos à execução, após a prévia garantia do juízo executivo – art.16 da Lei nº 6.830/80.
Contudo, falsa é conclusão supostamente decorrente dessa premissa, isto é, de que o IDPJ não poderia ser aplicado aos executivos fiscais, porque, se o fosse, estar-se-ia permitindo que o executado obtivesse a suspensão do processo sem a prévia garantia do juízo executivo e sem o manejo de embargos à execução ou de outra ação de conhecimento.
É necessário esclarecer que o equívoco da conclusão está na indevida definição da condição de executado àquele que consta no pedido de redirecionamento da execução. Isto porque, na verdade, esta pessoa, que poderá vim a sofrer os efeitos da despersonificação, por meio da extensão da responsabilidade tributária, é um mero terceiro, conforme exposto na primeira parte deste artigo e, por não integrar a lide executiva na condição de parte, não pode ser previamente qualificado e nem equiparado ao(s) executado(s), que estariam indicados no título executivo extrajudicial (CDA).
Em execução fiscal, a qualificação jurídica de parte, formalmente só pode ser atribuída a quem conste no título executivo extrajudicial (CDA), na condição de executado ou responsável tributário. Se a pessoa afetada pela eficácia jurídica e patrimonial da desconsideração da personalidade jurídica não figura na CDA, não há título executivo apto a presumir a sua legitimidade passiva.
Trata-se, portanto, de um terceiro na lide executiva, que não pode ser equiparado ao executado, sob pena de quebra da isonomia, em clara inobservância da exigência de tratamento paritário estabelecida pelo art. 7º do CPC:
Art. 7o É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
No mais, ao que aparenta, um incidente, tal como o IDPJ claro e eficiente evita futuras alegações de nulidades, o que, de resto, corrobora para a maior celeridade na solução do conflito de interesses e maior prestígio daqueles que seriam os macro princípios do processo civil – Efetividade e Segurança Jurídica- (ÁVILA 2010), responsáveis por determinarem a adequada e lógica marcha do processo, tendente a pacificação das relações estremecidas e formação de decisão com o selo do Estado e com interessante caráter prospectivo, protetivo e chancelador dos direitos fundamentais.
A intenção última não é defender ou permitir que o IDPJ sirva de escudo ou blindagem ao adimplemento da obrigação tributária, mas que, por meio deste possa haver maior proteção e garantias às partes da relação jurídica processual e até economizando ao Fisco honorários sucumbenciais de inclusões indevidas no polo passivo.
Pessoa Jurídica é pessoa jurídica. Pessoas físicas são pessoas físicas.
Repetimos, a presunção de responsabilidade só existe pela estrita legalidade tributária, o que não é dizer que se possa presumir condutas dolosas, por ofender todo o arcabouço do princípio de boa-fé e inocência existente no ordenamento jurídico brasileiro.
Continuando, a título de exemplos se traz à discussão a Lei 13.606/2018 cujo conteúdo refere-se a um programa de regularização rural – PRR, mas que, isoladamente, no artigo 25 introduz os artigos 20-B, parag 3º, II e 20-E à Lei 10.522/2002 que prevê a possibilidade de averbar, mesmo antes da execução fiscal a CDA nos órgãos de registro de bens e direitos, tornando-os indisponíveis para aquele contribuinte.
Quanto a este ponto, verifica-se que esta previsão não só é inconstitucional formalmente por estar inadequada à Lei Complementar e seu conteúdo destoar do objeto da Lei Ordinária em questão, mas também materialmente, pois o que se verifica é uma não observância ao princípio da legalidade de se cobrar tributo por meio de uma execução fiscal, sem utilizar de instrumentos que caracterizem sanções políticas ou medidas coercitivas, já amplamente vedadas pelo STF.
É nesta deslealdade legislativa que o contribuinte se encontra, buscando no Poder Judiciário uma salvaguarda de suas garantias e direitos fundamentais.
Por falar em sanção política, o último ponto a ser destacado, é a possibilidade de incriminar sujeito passivo que declare o ICMS e não o recolha.
Se estivéssemos a tratar de contribuição previdenciária de terceiros, onde a fonte pagadora retém dos seus colaboradores a referida contribuição e recolhe em nome destes. O não recolhimento, nesta hipótese configura apropriação indébita, mas dizer que a mesma sistemática se aplica ao ICMS é desconhecer a forma de apuração como conta corrente, onde em um mês pode haver débito, mas nos seguintes créditos. Como conceber responsabilidade criminal, dolo ou fraude nesta hipótese? Mas de forma bastante incoerente, se houver o pagamento a qualquer tempo, mesmo após a coisa julgada, haverá a extinção de punibilidade, logo não pode ser outra a conclusão a não ser que este tipo de medida representa uma forma coercitiva de cobrar tributo.
No dia 18.12.2019 o pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do Recurso nº 163.334 em Habeas Corpus de relatoria do Min. Luís Roberto Barroso que trata do ICMS declarado e não pago como hipótese de enquadramento no tipo penal de apropriação indébita, art, 2º, II da Lei 8.137/1990. Desde o início do mês, a mais alta Corte do país já formava maioria de votos no sentido do relator, que criminalizou a conduta “quando houver intenção”, isto é, o elemento doloso.
A tese fixada de criminalizar o ICMS declarado e não pago pelos demais ministros equiparou o ICMS ao empregador que retém um tributo de seu empregado deixando de cumprir com seu dever legal de recolhimento em nome deste. Não houve distinção de qual tipo de ICMS foi vinculado à apropriação indébita. Certo é que o ICMS – ST, onde há uma substituição tributária do recolhimento deste tributo por um sujeito da cadeia econômica que tem o dever legal de assim agir, sob pena deste se enquadrar no tipo penal do art. 2º, II da Lei 8.137/1990.
E o ICMS próprio? Pode ser tratado com este mesmo entendimento?
Penso que não, e ouso discordar com a máxima vênia da decisão proferida neste julgado do STF.
Me reconforto em ver que não estou só e mal acompanhado nesta forma de pensar.
Muitos juristas e professores também discordaram do STF neste ponto.
O Professor Fernando Facury Scaff em recente manifestação sobre o tema do ICMS próprio, assim destacou, “A apuração do ICMS próprio se assemelha a uma conta corrente com o fisco. Não existe certeza de que ao final do mês haverá ICMS a pagar (SCAFF, 2019) – em um mês pode ser ter um débito e no seguinte um crédito que supera o débito do mês anterior – inserto meu”.
E continua, “Acredito nas boas intenções de todos os ministros que votaram pela criminalização da conduta, porém a norma existente desde o remoto ano de 1990 (artigo 2º, inciso II) jamais contemplou esse tipo de interpretação acerca do ICMS próprio, e sua estrutura não permite a análise incriminatória neste regime tributário” (SCAFF, 2019).
A bem da verdade, entendo que este julgado do STF formalizará uma medida atípica e coercitiva de cobrar tributo. O inadimplemento pelo contribuinte de ICMS declarado abrirá a possibilidade do Fisco encaminhar a cobrança para um representação penal, onde o contribuinte, para não ser preso, terá a opção de suspender a medida com um parcelamento ou extinguir a punibilidade com o pagamento integral do tributo. Ora, se o pagamento do ICMS extingue a punibilidade, o que temos é um meio arbitrário de se cobrar tributo.
Muito embora o STF tenha destacado a necessidade de comprovar o dolo, me questiono se neste caso poderá haver uma presunção da conduta dolosa do contribuinte para enquadramento no referido tipo penal?
Já pensou?
No meu entender a mera declaração do ICMS e o seu não recolhimento não gera o lançamento do crédito tributário (forma de constituir o valor a ser cobrado), mas, agora, gerará uma pena de detenção de 6 meses a 2 anos e multa.
Fato é que se precisa de maior segurança jurídica no país, pois a criação de um tipo penal que inexiste pelo STF só trará consequências negativas ao “devido processo tributário” e a relações comerciais no país.
Como apresentou o Professor Saul Tourinho Leal, “é necessário preservar o estatuto constitucional de proteção dos contribuintes” (LEAL, 2019) e, esta novela está longe do fim, certamente será rediscutida esta matéria no Supremo.
Até aqui se buscou demonstrar os problemas que existem com a cobrança fiscal “tradicional”, por meio da execução fiscal e a insegurança jurídica que surge com os “meios alternativos” de se cobrar tributo.
Certamente, a Reforma ou reformas propostas ao sistema tributário estão propondo soluções para estes entraves....
Infelizmente, a PEC 45 em trâmite na Câmara dos Deputados e a PEC 104, discutida no Senado Federal, ou as mais atuais que estão surgindo não se debruçam sobre estes pontos tão delicados e importantes.
São várias as mudanças: competência, simplificação, unificação com o teórico fundamento de eficiência, mas de quê adianta buscar mudar ao arrepio do federalismo fiscal que deveria ser resguardado no atual sistema tributário brasileiro juntamente com princípios fundamentais?
Reformas infraconstitucionais, pontuais e diretas, direcionadas onde mais se precisa trarão maior eficiência para o Fisco e segurança aos contribuintes.
Nesse sentido, se questiona sobre a possibilidade da disponibilidade do crédito tributário privilegiando o “bom contribuinte” e tornado a cobrança mais eficaz.
Penso que a resposta deva ser positiva e de fundamental importância.
Para que se possa compreender este cenário, importante tecer algumas considerações sobre o ato de se negociar ou transacionar.
No entendimento de Marcelo Polo (POLO, 2017):
Transação é instituto jurídico dito plural, porquanto previsto ou aplicável nos mais diversos ramos ou sistemas (e microssistemas) do Direito, tendo como origem e campo de excelência o Direito Privado, diante dos cânones da autonomia privada e da disponibilidade do direito de crédito. É conceituada, de modo amplo, como o acordo das partes para a resolução de um conflito, conflito esse que pode envolver direitos ou situações jurídicas de qualquer natureza. Deve, pois, haver conflito, ou seja, litígio, direito de uma parte que encontra resistência na observância (direito real), na submissão (direito potestativo) ou no cumprimento da prestação (direito obrigacional) pela outra parte. Não é necessário que o litígio esteja judicializado: a transação pode ser extrajudicial. Se ocorrer no âmbito do processo judicial, será objeto de homologação pelo juiz da causa, provocando a solução da lide com resolução de mérito (art. 487, inciso III, alínea “b”, CPC).
Nesse sentido, a transação tributária nasce com a previsão de norma geral, observada a exigência do artigo 146, inciso III, alínea “b” da CF/88, no artigo 171 do CTN; possibilitando a criação de lei específica para estabelecer requisitos e critérios desta transação.
À título de reflexão (MELO FILHO, 2016) expõe a realidade federal nos Estados Unidos,
Há estudo estatístico do IRS que demonstra, quanto às ofertas recusadas pelo Fisco norte-americano que, em 44% dos casos, arrecadou-se menos que 50% do valor ofertado; em 31% dos casos, a arrecadação pelos meios ordinários foi inferior a 10% do valor ofertado em transação não concluída; ao passo que nada foi arrecadado em 21% dos casos de recusa de proposta transacional.
Quanto à disponibilidade do crédito tributário, se destaca a verificação do porquê um bem tutelado se torna “indisponível”. O crédito tributário, isto é, um meio para garantia de direitos fundamentais, conforme exposto acima, pode ser considerado indisponível ou é o direito fundamental que este deve assegurar ao verdadeiro bem jurídico que poderia gozar de uma indisponibilidade?
Não se defende que um agente fiscal possa negociar o crédito tributário como se estivesse em um leilão ou feira de mercado, mas que este possa dispor para transacionar o crédito em si para aperfeiçoar os meios de arrecadação, ao mesmo tempo que o contribuinte-devedor tenha uma forma mais justa e segura de se pagar tributo.
Se poderia, então, pensar em dispor do crédito tributário para conceder descontos para o contribuinte que recolha em dia o tributo. Será que isso não privilegiaria a tão almejada livre concorrência, segurança no valor a ser pago e incentivo à adimplência ou boa-fé na relação Fisco
– Contribuinte?
Nossa história desde 2009, em âmbito federal, com os parcelamentos especiais (REFIS) privilegia o contribuinte inadimplente e torna a vida do Fisco mais complicada, pois são inúmeras regras pontuais destes parcelamentos sem o sistema da SRFB ou PGFN que os acompanhem, gerando inúmeros problemas operacionais e de segurança para ambas as partes.
Até quando se privilegiará o consequente ao invés do antecedente, isto, é, até quando se dará descontos para o inadimplente pagar o seu atrasado com condições mais benéficas daquele que paga em dia?
Pensamos ser mais interessante beneficiar o pagamento em dia do tributo ou o pagamento antecipado, concedendo descontos do principal. Será melhor ter uma adimplência de 90% do tributo por um eventual desconto de 10% concedido ou uma inadimplência de 75% do tributo, pois apenas 25% dos contribuintes pagam 100% daquilo que era devido?
Este ponto merece maiores reflexões e não é em um breve artigo que se busca exauri-lo, mas um alerta deve ser deixado, pois as Reformas Constitucionais não passam sequer de longe nesta temática.
Apesar de inexistir expressa conceituação legal no ordenamento brasileiro a respeito da locução "direitos indisponíveis", pode-se dizer que existe uma compreensão generalizada no sentido de se tratar de uma especial categoria de direitos cujo interesse público de efetiva proteção torna irrenunciáveis, inalienáveis e intransmissíveis por parte de seus próprios titulares. A marca da indisponibilidade, assim, revelaria uma legítima opção intervencionista do Estado no campo das liberdades individuais e sociais no sentido de, paradoxalmente, por via de vedações ou restrições do exercício de certos direitos ou interesses, protegê-los contra lesões ou ameaças provenientes de seus próprios titulares ou de terceiros (VENTURI 2016).
Corroborando a isto os autores Antônio Américo Junior, Clarice Santos e Matheus Ferreira defendem:
Há entendimento, inclusive, de que mesmo tratando de negócio processual que envolva aspectos de direito material, como, por exemplo, em uma transação envolvendo a Fazenda Pública, esta não estaria dispondo do interesse público, mas, em verdade, da tutela jurisdicional deste, buscando uma via alternativa para protegê-lo (TALAMINI, 2018, p. 293).
Ainda sobre a dicotomia entre direitos que admitam autocomposição e a polêmica indisponibilidade do interesse público, afirma-se que a adoção desta última como parâmetro para limitar as convenções processuais se mostra cada vez mais insuficiente em razão do seu caráter abstrato. Portanto, há uma tendência de superação do antagonismo entre público e privado no modelo de processo cooperativo (CABRAL, 2018, p. 217), de forma que as hipóteses nas quais não cabe autocomposição estão cada vez mais restritas.
Destaca-se, portanto, a conclusão de que a problemática relativa à celebração de negócios processuais pela Fazenda Pública não mais deve ser pautada na possibilidade, mas sim no modo como será exercida a liberdade negocial concedida pelo art. 190 (CIANCI; MEGNA, 2017, p. 672). Tal afirmação se reflete, como visto, na existência de diversos atos normativos editados pela própria Fazenda, disciplinando exatamente o modo como serão confeccionados os negócios processuais pelos seus membros, sequer questionando a possibilidade de realização destes. (AMÉRICO JÚNIOR, 2020).
Para evidenciar a real situação do Brasil, quanto ao tema, a Professora Liliane Cisotto ensina:
De acordo com dados extraídos da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o Brasil tem R$ 1,5 trilhão de reais em créditos tributários estacionados na dívida ativa que necessita de respostas às demandas para os contribuintes e, por conta disso, empresas deixam de ter lucros, comprometem suas provisões e, inclusive, travam possíveis vendas para investidores. Fazendo um comparativo, verifica-se que o atual cenário econômico brasileiro é semelhante ao de Portugal quando aquele país instituiu a Arbitragem Tributária, em 2011. Naquela época, Portugal tinha endividamento de 93% do produto interno bruto (PIB), conforme dados apresentados pela professora portuguesa Tania Carvalhais Pereira, no evento Arbitragem tributária – Experiência portuguesa e desafios para implantação no Brasil, ocorrido em 19 de setembro de 2017 na Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, e detalhado por Thatiane Piscitelli no jornal Valor Econômico. No Brasil, relatam, há endividamento de 74% do PIB. Àquela época, em Portugal havia também a impossibilidade de obtenção de empréstimos internacionais e a necessidade urgente de reduzir despesas e arrecadar receitas. Assim, verificaram que uma forma de contribuir para a melhora desse cenário seria pela flexibilização da relação entre o fisco e os contribuintes por vias alternativas para dirimir problemas; assim, elegeram a Arbitragem por sua celeridade, seriedade e pelo fato de seus árbitros serem técnicos altamente qualificados, observando que não necessariamente deveriam ter formação jurídica.
No Brasil, o administrador não tem a faculdade de concretizar transações com qualquer bem público, e o próprio conceito trazido por Hely Lopes Meireles e por Paulo de Barros Carvalho6 inclui nesses bens o crédito. Ademais, diante do princípio da indisponibilidade advindo do Direito Administrativo e nos termos dos artigos 141 e 1717 do Código Tributário Nacional, só haveria flexibilidade de discussão caso existisse lei permissiva, o que ainda não há em nosso ordenamento. Doutrinadores como Heleno Taveira Torres entendem que deve haver disponibilidade do crédito tributário pelo fato de poder haver redução por decisão judicial, e há também os que entendem que seria dispor do crédito o fato de a administração utilizar-se de parcelamentos especiais com grandes descontos em multas e juros; nesse contexto, estariam abrindo mão do crédito? Parece-nos que não. (CISOTTO,2019).
A experiência de outros países é ainda mais interessante e eficaz. Na França e Portugal, por exemplo, se fala em arbitragem tributária como um meio alternativo de se cobrar tributo.
A professora e Conselheira do CARF, Thais Laurentis (LAURENTIS, 2019), defende:
Nesse cenário, embora possa ser interessante, em termos de segurança jurídica dos gestores, a edição de lei ordinária para regular a arbitragem entre contribuintes e Fazenda Pública, formalmente ela seria desnecessária, uma vez que, não havendo regra específica que proíba a arbitragem para as questões aqui vislumbradas, não pode o Estado ficar impedido de utilizar a arbitragem.81 Essa, sublinhe-se, é uma dentre as várias formas de solução de controvérsias que podem ser adotadas, não só podendo, mas devendo ser utilizada pela Administração Fiscal para as situações que entender adequadas, mediante a devida motivação para tanto.
Elton Venturi (VENTURI, 2016) corrobora:
De tudo o quanto exposto, concluímos que solução interessante para o entrave acerca a arbitrabilidade objetiva no bojo do direito tributário seria submeter ao juízo arbitral não as questões propriamente tributárias (sujeito passivo, base de cálculo etc.), mas sim questões prejudiciais que sejam determinantes à solução das demandas fiscais, geralmente afetas às outras áreas do conhecimento jurídico (civil, comercial etc.) ou extrajurídico (contábil, econômico etc.). Estas últimas, mais distantes do núcleo da ordem pública, não oferecem empecilho à contratação da arbitragem, como bem observado pela doutrina francesa. Não buscamos com essa proposta solucionar definitivamente a discussão relativa a toda a extensão do “direito público disponível em matéria tributária” que poderia ser objeto de arbitragem, que ainda é passível de ampla evolução doutrinária, jurisprudencial e legislativa. O nosso foco é, isso sim, trazer nova proposta de solução e contribuir com o debate, indo além dos trabalhos que se esgotam na discussão conceitual sobre a possibilidade ou não da utilização da arbitragem no campo fiscal, muitas vezes tendo como mira a experiência bem-sucedida do ordenamento jurídico português.
Assim sendo, é natural que a mudança de paradigma e do próprio sistema tributário forneça fundamentos mais fortes para a consensualidade ou cooperatividade no âmbito processual judicial e administrativo ou até de cobrança sem o efetivo litígio; onde já se vislumbram inúmeras possibilidades de transação em diversas searas do Direito Público (SCHENATO JUNIOR, 2019).
Continua Schenato Junior (SCHENATO JUNIOR, 2019):
A consequência lógica é a de que a adaptação do processo em função das peculiaridades dos casos concretos, das condições econômicas do contribuinte, da região e da ponderação de interesses é meio adequado para facilitar a recuperação de créditos inscritos em dívida ativa e promover, por fim, a pluralidade de interesses públicos.
A finalidade central deste artigo, após demonstrar o atual contexto utilizado pelo Fisco como meios alternativos para a cobrança de tributo, foi buscar apresentar e defender que o crédito tributário não pode ser limitado por uma suposta indisponibilidade deste. É dever do Estado e direito dos contribuintes se buscar aplicar a cooperatividade para soluções consensuais de adimplemento do crédito tributário por meio de transações e até arbitragem, amplamente previstos com o Código de Processo Civil de 2015.
Mesmo havendo uma ineficiência de prestações positivas pelo Estado para garantia dos direitos fundamentais, por uma desorganização arrecadatória tributária, não poderá este mesmo Estado deixar de observar as garantias constitucionais da vedação ao confisco que deve ter ampla extensão e proteção, ainda assim considerando as inovadoras medidas alternativas de cobrança do crédito tributário que podem ser mais eficazes e legítimas com a efetiva participação dos contribuintes; tornando o procedimento e processo mais leal e de boa-fé para credor e devedor.
Estou bastante otimista com o recente cargo (24.05.2022) como Presidente da PEC 007, assumido pelo Deputado paraense Joaquim Passarinho, que visa a alteração do Sistema Tributário Nacional, na esperança de que pontos relevantes como estes, dentre outros serão debatidos e colocados em pauta para o aperfeiçoamento da relação fisco-contribuinte.
Entendo, contudo, que o sistema tributário para se tornar eficaz não precisa de reformas constitucionais abrangentes, seria excelente se conseguíssemos, mas de reformas pontuais em institutos e processos, como os apontados neste artigo, a fim de se privilegiar, ambos, Fisco e Contribuinte que devem convergir a um fim de justiça social fiscal comum.
Este cenário já seria promissor.
Qualquer outro olhar que não considere as peculiaridades regionais e a necessidade do país se desenvolver, não passará de uma deforma do sistema tributário como todo.
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