03/11/2023 às 13h01min - Atualizada em 03/11/2023 às 13h01min
O crime eleitoral de apropriação de valores destinados ao financiamento eleitoral e sua relação com a prestação de contas de campanha
*Por Cláudio Moraes.
Em todas as campanhas eleitorais os recursos financeiros são essenciais para candidatos e partidos divulgarem suas plataformas de trabalhado e para se aproximarem do eleitorado.
A depender do tipo de campanha, objetivo e tamanho do eleitorado vai ser preciso mais ou menos recursos, mas sempre haverá necessidade destes, especialmente nas eleições majoritárias para o cargo do Poder Executivo ou do Senado Federal.
Nos diversos regimes democráticos pelo mundo tem-se exemplos de financiamento público e privado, com e sem a participação de pessoas jurídicas, e cada modelo escolhido comporta pontos positivos e negativos. De toda forma, o certo é que é preciso financiar a democracia, seja de forma pública, privada ou híbrida.
No Brasil há o sistema híbrido, ou misto, de financiamento de campanha eleitoral, existindo tanto verbas públicas, como doações do setor privado, mediante doações de pessoais físicas, com a vedação de doações de pessoas jurídicas, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI n. 4650, que declarou inconstitucional a doação de pessoas jurídicas a partidos e candidatos.
O julgamento da referida ADI 4650 se deu em setembro de 2015. Em 6/10/2017, foi sancionada e publicada a Lei 13.487/2017, que alterou a Lei das Eleições (Lei 9.504/1997) e instituiu o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), popularmente conhecido como Fundo Eleitoral, como uma espécie de alternativa à proibição de doações pelas empresas privadas pelo STF. E é aqui que a coisa fica mais séria.
O Fundo Eleitoral (FEFC) é constituído por dotações orçamentárias da União em ano eleitoral, e o Tesouro Nacional depositará os recursos no Banco do Brasil, em conta especial à disposição do Tribunal Superior Eleitoral, até o primeiro dia útil do mês de junho do ano do pleito (art. 16-C, § 2º, da Lei 9.504/1997).
Esses recursos financeiros do Fundo Eleitoral ficarão à disposição dos partidos políticos somente após a definição de critérios para a sua distribuição, os quais serão devidamente publicados, após aprovação pela maioria absoluta dos membros do órgão de direção executiva nacional do partido.
É importante não confundir o Fundo Eleitoral com o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, popularmente conhecido como Fundo Partidário.
O Fundo Partidário foi criado pela Lei 4.740/1965, mas atualmente é previso na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995), e é destinado à manutenção dos partidos políticos e distribuído mensalmente às legendas, mas também pode ser usado em campanhas eleitorais (art. 44, III, da Lei 9.096/1995); enquanto o Fundo Eleitoral é voltado exclusivamente para financiar campanhas eleitorais e é distribuído somente no ano das eleições.
Pois bem. Em 6/10/2017 foi publicada a Lei 13.488/2017, que alterou o Código Eleitoral (Lei 4.737/1965) para inserir o art. 354-A, o qual tipifica como crime apropriar-se o candidato, o administrador financeiro da campanha, ou quem de fato exerça essa função, de bens, recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral, em proveito próprio ou alheio.
A pena para tal crime é de reclusão de dois a seis anos, e multa.
O assunto sobre apropriação de bens, recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral também é tratado no art. 82 da Resolução TSE n. 23.607/2019, que dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos e candidatos e sobre a prestação de contas nas eleições.
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Conhecendo a ausência de formação técnicas (político-eleitoral) dos (pré)candidatos em todo o Brasil, não seria surpresa alguma identificar milhares de candidatos e candidatas pelo país utilizando os recursos de financiamento de campanha de forma irregular sem saber que poderia estar cometendo algum ilícito criminal, sem qualquer intuito criminoso, mas somente por desconhecer as regras eleitorais sobre prestação de contas e a forma de utilizar os recursos financeiros disponíveis.
- Casos reais de ações penais sobre apropriação de valores destinados a financiamento eleitoral – Prestação de contas de campanha
Em todo o Brasil, candidatos e dirigentes partidários são acionados criminalmente pelo uso indevido de recursos destinados à campanha eleitoral, especialmente quando se trata de recursos públicos do Fundo Eleitoral.
Verifica-se nessas denúncias oferecidas pelo Ministério Público Eleitoral que as prestações de contas de campanha dos candidatos e candidatas são as principais fontes para a identificação de possíveis ilegalidades/ilicitudes relacionadas à possível apropriação de valores destinados ao financiamento eleitoral.
A título de exemplo, cita-se a Ação Penal Eleitoral n. 0600024-34.2022.6.20.0004, que tramita na 002ª Zona Eleitoral de Natal. Na decisão judicial que recebeu a denúncia do Ministério Público Eleitoral e a transformou em ação penal, o Juiz Eleitoral relata o seguinte (o nome da denunciada está identificado apenas com as iniciais):
Trata-se de Denúncia ofertada pelo Ministério Público Eleitoral do Rio Grande do Norte em desfavor de R. L. M. de S. perante esta 2ª Zona Eleitoral, imputando à denunciada a prática do crime tipificado no Art. 354-A do Código Eleitoral, ocorrido durante o período de campanha das eleições de 2020 - quando a denunciada foi candidata a vereadora.
Dessa forma, considerando o disposto no art. 396 do Código de Processo Penal (CPP), passa-se, neste momento, ao juízo de admissibilidade da denúncia. Quanto aos requisitos materiais constantes do art. 41 do CPP, verifica-se que estão presentes.
No que diz respeito aos pressupostos formais do art. 395 do CPP, tem-se que há condições para o exercício da ação penal e justa causa para sua propositura, de forma que, de pronto, não se vislumbra nenhuma das hipóteses de inépcia da inicial, haja vista se encontrar fundamentada em elementos informativos que amparam a materialidade e autoria delitiva por parte da denunciada, levando a um juízo de probabilidade dos fatos narrados.
A denúncia (ID 120923816) encontra-se amparada pelo Relatório nº 1623448/2022 (ID 105341645) elaborado pela Autoridade Policial, no qual é relatado que a denunciada se apropriou, indevidamente, da importância total de R$ 4.591,25 (quatro mil, quinhentos e noventa e um reais e vinte e cinco centavos) - montante destinado ao financiamento da sua campanha eleitoral para o cargo eletivo de Vereadora do Município de Natal/RN.
Ademais, durante as investigações, a denunciada foi ouvida pela Polícia Federal, momento no qual afirmou ter efetuado despesas de campanha com a quantia mencionada; porém, não especificou quais seriam os fornecedores de bens e serviços. Verificou-se também, conforme documentos enviados pelo Banco do Brasil (IDs 107338609 e 107338610), que a acusada efetuou saques dos já citados valores destinados ao financiamento da campanha eleitoral.
Analisando os autos, verifica-se que o Órgão do Ministério Público considerou que a denunciada praticou a conduta tipificada no Art. 354-A do Código Eleitoral, razão pela qual ofereceu denúncia a fim de que, após o devido processo legal, seja condenada na pena descrita no artigo supracitado.
Além disso, na denúncia consta a informação que a Ré não preenche um dos requisitos objetivos para a concessão do Acordo de Não Persecução Penal, previsto no Art. 28-A do Código de Processo Penal, pois foi beneficiada no ano de 2022 com a suspensão condicional de processo em trâmite na 5ª Vara Criminal da Comarca de Natal/RN.
Diante do exposto, RECEBO a denúncia e, pelo que consta dos autos, entendo pelo não cabimento, para este caso, do Acordo de Não Persecução Penal.
A denúncia do MPE alega que a ré se apropriou de R$ 4.591,25 (quatro mil, quinhentos e noventa e um reais e vinte e cinco centavos), e isso teria sido identificado justamente na prestação de contas de campanha, uma vez que a ré foi candidata a vereadora em Natal, nas Eleições 2020.
Esse valor de R$ 4.591,12 pode ser considerado relativo pequeno em comparação com o limite máximo de gasto nas Eleições 2020 em Natal, que era de R$ 339.352,08 (trezentos e trinta e nove mil, trezentos e cinquenta e dois reais e oito centavos), conforme tabela divulgada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Veja a íntegra da decisão do Juiz Eleitoral que recebeu a denúncia do MPE clicando aqui.
Sem fazer qualquer juízo de mérito sobre a denúncia apresentada pelo Ministério Público Eleitoral, mas problemas com desorganização na prestação de contas de campanha podem gerar várias consequências graves aos candidatos e candidatas, inclusive ações criminais como esta da candidata a vereadora em Natal-RN.
A prestação de contas de campanha é um complexo quebra-cabeça que deve ser muito bem cuidada desde a pré-campanha eleitoral, passando pelo processo eleitoral, apresentação das contas à Justiça Eleitoral após as eleições, acompanhamento de possíveis notificações sobre diligências a serem respondidas, e culminando no julgamento definitivo das contas pela Justiça Eleitoral, incluindo aqui as possibilidades de recursos judiciais, caso necessário.
A falta de conhecimento das regras eleitorais sobre prestação de contas de campanha pelo candidato ou candidata somada à falta de equipe técnica própria para cuidar da parte administrativa, jurídica e contábil da campanha são fatores decisivos para o sucesso ou fracasso de uma campanha eleitoral, com possibilidade de consequências na área financeira, eleitoral e criminal, como visto. *Cláudio Moraes é advogado, especialista em Direito Eleitoral e Direito Administrativo, já atuou como Procurador-Geral de Município, e é sócio-fundador do escritório Cláudio Moraes Advogados:
(www.claudiomoraes.adv.br - Instagram: @claudiomoraes.7).