01/07/2022 às 15h34min - Atualizada em 01/07/2022 às 15h34min

A necessária retroatividade dos efeitos da reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) realizada pela Lei 14.230/2021

A irretroatividade atenta contra o Estado Democrático de Direito

Cláudio Moraes

Cláudio Moraes

Advogado especialista em Direito Administrativo e Direito Eleitoral, sócio-fundador do escritório Cláudio Moraes Advogados: www.claudiomoraes.adv.br

A Lei 14.230/2021 promoveu importantes e profundas alterações na Lei 8.429/1992, conhecida como a Lei de Improbidade Administrativa - LIA. Antes da reforma, o texto da Lei 8.429/1992, inegável e lamentavelmente, produziu uma infinidade de distorções ao longo do tempo e se distanciou do seu verdadeiro objetivo: a repressão à improbidade, o que promoveu a banalização das ações sancionadoras.
 
A improbidade fundada em mera culpa, conforme antiga redação do art. 10 da LIA, transformava o conceito de improbidade em indeterminado, gerava grande insegurança jurídica e promovia o apagão das canetas, uma vez que os gestores tinham medo de ousar em sua gestão e serem responsabilizados pelo simples discordar dos órgãos fiscalizadores, por mais que não houvesse atos ímprobos propriamente.
 
Sem dúvida, uma das alterações mais significas da Lei 8.429/1992, pela reforma realizada pela Lei 14.230/2021, trata da exclusão da modalidade culposa, que tanto mal fez a inúmeros gestores e à administração pública, pois afugentou ao longo do tempo diversas pessoas de alta capacidade técnica dos quadros públicos por temerem sofrer, por mera culpa, indevidas ações de improbidade que devastam uma vida inteira.

Outra alteração de extrema importante no art. 10 é a obrigatoriedade do elemento subjetivo dolo, inclusive quando houver dano ao erário, ou seja, até mesmo quando houver dano é preciso a comprovação de dolo do agente público para fins de caracterização do ato de improbidade.
 
O atual caput do art. 10 da Lei 8.429/2021 não deixa margem para dúvida quanto à exigência de dolo na ação ou omissão do agente, somado ao fato da necessidade de efetiva e comprovada perda patrimonial, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres do patrimônio público, a saber:

 
Lei 8.429/1992

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:         (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

[...]

VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva;      (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021) (Destacou-se).
 
 
O art. 10 pressupõe a intensão, a consciência, a vontade de atuar de forma lesiva ao patrimônio público. Aliás, esse é o núcleo duro da reforma realizada na LIA: a exigência de comprovação do dolo, da má-fé, da intensão de lesão.
 
A reforma realizada pela Lei 14.230/2021, que praticamente transformou a Lei 8.429/1992 em uma nova Lei, objetivou retirar o conceito indeterminado dos atos ímprobos, direcionando a LIA para situações que contenham atos dolosos específicos, que tenham a intensão de lesar o erário somado à efetiva e comprovada perda patrimonial.
 
O caput do art. 10 passou a exigir o dolo específico - a vontade deliberada do agente em lesar o erário - e o seu inciso VIII, quando da alegação de dispensa indevida de licitação, exige também a perda patrimonial efetiva.
 
Assim, a LIA, incluindo o inciso VIII do art. 10, não autoriza mais a lamentável subjetividade de outrora para que, a bel prazer do autor, se atribua à determinada dispensa de licitação a pecha de “dispensa indevida” no intuito de se buscar a responsabilidade de agentes públicos. Agora, é preciso a comprovação do dolo específico + perda patrimonial efetiva.
 
Havendo a exclusão da modalidade culposa pela reforma da LIA, e sendo ela mais benéfica aos réus em ação de improbidade em tramitação, devem seus efeitos ser aplicados sobre as ações em curso antes do advento da Lei 14.230/2021, sendo esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual o direito administrativo sancionador pertence ao sistema penal em sentido lato (STF: Rcl 41557/SP).
 
Assim, as alterações normativas mais benéficas ao indivíduo aplicam-se de forma retroativa, por estar esse ramo do direito dentro da esfera do jus puniendi do Estado.
 
Como se sabe, a Lei 14.230/2021 deixou registrado no § 4º do art. 1º da Lei 8.429/1992 que a esta Lei plicam-se os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.
 
Abaixo, julgado do STJ aplicando a retroatividade da lei mais benéfica no direito administrativo sancionador:
 
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. PODER DE POLÍCIA. SUNAB. MULTA ADMINISTRATIVA. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE. ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DO DIREITO SANCIONATÓRIO. AFASTADA A APLICAÇÃO DA MULTA DO ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC.
 
I. O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage. Precedente.
 
II. Afastado o fundamento da aplicação analógica do art. 106 do Código Tributário Nacional, bem como a multa aplicada com base no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil.

III. Recurso especial parcialmente provido. REsp 1153083 / MT. RECURSO ESPECIAL 2009/0159636-0. RELATOR Ministro SÉRGIO KUKINA. DATA DO JULGAMENTO 06/11/2014. (Destacou-se)
 
O direito administrativo sancionador e o direito penal se entrelaçam por representarem a manifestação penalizadora do Estado, motivo pelo qual as alterações benéficas precisam, obrigatoriamente, retroagir. Caso tal retroatividade não ocorra, estará se colocando em sério risco o Estado Democrático de Direito, pois não há se falar em direito adquirido do Estado em punir, quando da alteração legislativa benéfica, mas sim do direito do cidadão de se defender da mão autoritária do Estado.
 
Como visto nos julgados acima colacionados, a retroatividade da lei mais benéfica é um direito constitucional da pessoa. A garantia da retroatividade da aplicação da lei mais benéfica no direito sancionatório é um dever do Estado sempre que exerce a função punitivista.
 
Negar a aplicabilidade imediata da norma mais benéfica seria um contrassenso que só militaria em desfavor do indivíduo, o que fulmina, inclusive, um dos pilares do Estado Democrático de Direito brasileiro, a dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 1º, III, da Constituição Federal.

 
Link
Leia Também »
Comentários »
Comentar

*Ao utilizar o sistema de comentários você está de acordo com a POLÍTICA DE PRIVACIDADE do site https://cidadesenegocios.com.br/.
Fale pelo Whatsapp
Atendimento
Precisa de ajuda? Fale conosco pelo Whatsapp